sexta-feira, 2 de junho de 2023

jangada não foi pro mar (CENA 52)

     

    Era julho de 2021 e naquele local a tristeza caminhava nos rostos dos poucos  presentes. Os velórios proibidos. Apenas os mais próximos e alguns poucos da família. Bia consternada, frágil, pálida, se debruçava sobre o caixote, Josué parecia sorrir. Ela parecia nem ligar mais pro vírus, estando sem máscara, chorando o pai de seu filho, o companheiro por 35 anos. Um casamento que vinha se esgaçando no cotidiano das coisas, dos problemas familiares, juntando-se aos do país desgovernado e ambicionado pelas elites que lambiam suas línguas demoníacas, se preocupando com o tilintar do mercado. Quem quer saber de povo? governo neoliberal nenhum quer se interessar por tão pouco, tão povo. As lágrimas se esgotavam enquanto ela se lamentava por esse momento que pensava não passaria.

    Passou por tanta gente, na família de Dorinha, uma vizinha mais distante do povoado, quantos de seus familiares vieram a óbito. Agora a família de Bia e Toninho veneravam os últimos instantes próximos a Josué. O responsável por aquela família descansava alheio às dores de parentes e amigos pescadores. Josué pereceu, mas lutou enquanto pode contra os sintomas do corona, até que já na UTI sentiu perder a força pulmonar e desistiu de insistir.

    Nos últimos seis meses, Bia e Josué andavam distanciados. Ele decidira passar um tempo fora de casa para refletir sobre aquele casamento que se perdeu na estrada da rotina. Nem retornara ao lar. Agora, Bia fora conduzida pelo corredor do hospital apinhado de gente que também lutava por viver e às vezes, solitariamente, para evitar o contágio de familiares. Coitados e solitários, tantos. Tantos tão sofridos e sozinhos, sem nenhum aparato e trato público. Bia se recordava do caso contado pelo marido um ano antes, aquele sonho pandemônio, pesadelo de pássaros desesperados e desfalecendo. Agora ele, o pássaro alvejado em tiro certeiro num dos celeiros desse país.

    Bia estava em luto. Toninho e a namorada esperavam lá fora.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

o tempo não para (CENA 51)

20/06/2022  

Temporariamente Dodô e Osvaldo se deixaram levar por aquele mar de lembranças que com a pandemia parecia quebrar com força na areia, era premente lembrar, como se restaurasse a saúde mental que andava aos cangalhos pelas más notícias de um país que se perdeu na irresponsabilidade. A cada dia más notícias, mau direcionamento, os estribilhos retornavam com a lenga-lenga do poder em nada resolver quando se tratava em atender às necessidades da maioria da população. Mas no mar do Sul com frequência o Jetski e o presidente montado, entre outros brinquedinhos usados com o dinheiro público.

Tendo chegado a mais de quinhentas mil mortes em junho de 2021 com coronavírus e vão aumentar pela lerdeza desse poder público de mão incompetente. Eles conversavam e a cada pontuação, Dodô e Osvaldo traziam a ira à face, como é possível tudo estar tão mal e a mídia tradicional concordante e até mesmo incentivando o massacre e destruição do país, é de dar muito nojo, diziam.

― Tá na hora da gente dormir, Valdo, o cansaço bateu com força.

― As horas voam, nem dei por mim, a gente encarna nesses assuntos tão obcecadamente, almejando o fim. E sonhando outubro. Essa ânsia louca de ver a normalidade de volta nos dá esperança e força pra lutar. Vai na frente, Dodô, vou limpar a mesinha e levar os vasilhames.

― Cruz credo, Valdo, deixa eu te ajudar, eta homem que não sabe pedir, credo.

 

― Nossa, que noite passei, Valdo, parece que dormi uma gestação, como se eu estivesse ficado parada por nove meses. Você botou feitiço naquela canjica porque me vi completamente entregue ao sono e sonho. Estava num cansaço, esses últimos anos têm sido estressantes para quem tem a consciência no lugar, viu, ainda bem fiquei descansada por aqui. Tenho de dar jeito no colchão lá de casa que está me dando dores nos quartos. ― Dodô confessou a Osvaldo entrando na cozinha, ele preparava o café.


― Que nada, Dodô, foi canjica honesta e condimentos aromáticos conhecidos e saudáveis. Não sou de fake news, me poupe ― Osvaldo riu e atento na composição da mesa. Você precisava de boa conversa e disso nos beneficiamos ontem à noite. Você tem que voltar mais vezes pra me contar mais histórias de viagem.

― Tive um sonho, vou te contar na hora do café. Parecia tão real.

 

‘Os olhos se fixaram um no outro. Eles se identificaram em tantas coisas, na rotina da vida, nos gostos, nos dizeres, nos prazeres simples e se envolveram naquele encontro como se fossem há muito conhecidos. E tinham sorte. Os dois eram livres para se deixarem levar. Começaram a se apaixonar. Não conseguiam ficar distantes, a pele os aproximava na quentura dos desejos e o amor crescia a cada dia. Tinham a exuberância da idade, pareciam adolescentes, eram românticos natos. Isso em meados do século XX. O envolvimento fazia que o real lá de fora perdesse importância. A fantasia e imaginação voavam junto aos carinhos que cresciam em intensidade e vinham tão transparentes, sem censura, sem jogos. Era tão natural e os olhares se perdiam. De repente os dois se assustaram enquanto se beijavam timidamente. As mães gritavam de casa para entrar que já era noite. Ele disse baixinho, nunca fui tão feliz assim antes. Ela viajou nas palavras a lugares infindos. Eles se despediram com a certeza de que não conseguiriam parar aquele amor.’

 

― Poxa, Dodô, que pena bati à porta te chamando pro café e interrompi o romance. Mas que auge, hem, quem sabe continua a sonhar.

― Acredito nisso, talvez da próxima vez que eu comer da sua canjica e dormir no aconchego do seu quarto, quem sabe. Bom, preciso trabalhar, Valdo, a gente conversa depois, tá.

Os dois se despediram e foram cuidar da vida, vida que exige coragem.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

o decorrer do tempo (CENA 50)

 


27/09/2021

            ― Quer mais canjica? ― Osvaldo perguntou, e agora era vez de Dodô andar atracada em pensamentos aéreos, voa com certeza, disse Osvaldo em voz amena a si. A mulher arisca, atrevida e que gostava de contar as aventuras com o marido andava longe.

Ele então tascou fogo noutro amaldiçoado cigarro e ambos se alienaram entre cinzas e o acinzentado da fumaça. Acendeu mais outro assim que a bituca se esvaia. Era bom estar em companhia amiga. Lembrou-se de Luiza, do rapaz e da avoada mulher ao seu lado, Dodô. Pessoas que faziam o tempo amenizar-se enquanto lá fora a batalha era a sobrevivência. Alguns minutos que ganhavam tanta importância, o afago de amizades que não imaginaria surgirem em sua vida solitária. Cada uma tinha algo especial e admitia a si que nesse momento de tamanha atormentação para o país, essas pessoas acrescentavam significado à sua existência. Luiza com sua doçura e ao mesmo tempo firmeza nas decisões, uma autêntica mulher que se revelava a ele tão terna. O toque em sua pele lhe trazia lembranças, as quais não soube de que tipo. Dodô, ao contrário, levava-o a suas viagens, especificando cada detalhe, cada trajeto, cada decisão para obter mais adrenalina e com ela seguia energizado e com ânsia de conhecer mais e mais lugares fantásticos e agora estava ali aconchegada com os pezinhos no pilar da sacada, como uma garota selvagem. Dodô trazia aspectos que libertava enquanto falava aos cântaros. Era bom escutar. Interrompeu o pensamento e olhou para ela que ainda ia alhures.

Então veio a figura do rapaz, outro contador de histórias, mas de jeito jocoso nos stand-ups da vida, mostrava ironia, sarcasmo e arrebatava-o em risadas, ah, como a juventude traz alegria aos momentos mais inusitados. Ele fora um jovem com a timidez emperrando sua espontaneidade. O rapaz não, troçava de qualquer simples evento. Tinha um carinho indefinido por aquele rapaz, gostava de não dizer o seu nome, rapaz traduzia sua performance.

Estranhou seu ensimesmamento e riu, isso não era novidade alguma. E quando virou o rosto, Dodô o observava.

― Valdo, você estava longe e sorridente ou é impressão minha?

― Dodô, gostaria de te perguntar a mesma coisa, porque fiquei um tempo te olhando e você navegava.

Os dois riram.

― Tenho de caçar rumo, trabalho amanhã.

― Pra que pressa, Dodô, tem alguém te esperando?

― Até gostaria, às vezes sinto falta de companhia.

― Dorme aqui, tá tarde. O quarto está arrumadinho e é só pegar toalha no armário. Vai, deixa de cerimônia, não é trabalho nenhum. Daqui você vai para o trabalho e não precisa sair e enfrentar a pandemia. O quarto e o apartamento em si são acolhedores, você é bem-vinda.

― Ah, Valdo, convite tentador, bom que a gente pode continuar com um pouco mais de prosa nesse ambiente zen de sua sacada, que delícia. Vou até pegar mais canjica depois.

Osvaldo quase deixou escapulir que Luiza quando dormira por lá considerou isso também, não, não sei se Luiza comentou com Dodô, pensou.

Ambos continuaram em suas epopeias. Viagem ad interim.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

falar e silenciar (CENA 49)

12/08/2021

O aflorar de questionamentos, que anteriormente na correria do dia a dia, na ansiedade e exigência da vida, não tinha tempo requerido para reflexão, agora, presos em casa ou na necessidade de estar às ruas com todas as prevenções devido as variantes que se multiplicam, anda em auge. O humano sujeitado a se ler e a se revelar em busca de adaptação. A pandemia exacerbou angústias. Pessoas exauridas com o isolamento imposto para sobrevivência. Escolhas se estreitando.

Os dois amigos sentindo na pele tanta mudança e cada qual sentado em um canto, tanto por dizer ou silenciar. Dodô olhar atento para Osvaldo aguardando resposta. Era como se ele estivesse voltado completamente para dentro de si e esquecido donde estava, por onde caminhava, ondeado por redemoinhos.

― Osvaldo, aonde você está? O que diria para meu amigo escritor?

― Hã! Oi! O quê? ― Osvaldo voltou o rosto em direção de Dodô. ― Bem... eu poderia dar quatro respostas e existiriam outras mais. Vamos lá!

Em se tratando de literatura, todas as possibilidades estão em aberto, a depender de qual ponto trafega o escritor e suas intenções, se romântico, se realista, ou surrealista, até nonsense caberia entre aspas.

De outro lado, a idade não deveria ser argumento para aceitação do cômodo. Enquanto houver vida, correr risco em busca do novo deveria ser a tônica. Um novo amor, uma nova paixão, deixar o outro seguir seu destino a novas emoções, até mesmo novo compromisso sem a seriedade de antes pode ser um ponto de exclamação, ou até nenhum relacionamento, por que não!

Dado minha experiência com esposa em tratamento de saúde, sexo deixara de complementar o amor nos últimos tempos do casamento. O corpo cansado não está à procura de orgasmo. Nesse aspecto apelo ao prático. É possível viver sem sexo, mas sem o afeto de um abraço, do toque que abarca tantas emoções, vejo com reticências.

E ainda, considerando o que seu amigo acha possível, um casal sem afinidade física mas com amor espiritual, penso que nem um amigo meu quando lhe pegam a dar conselho e dizer ‘se eu fosse você...’ ele geralmente responde: ‘se você fosse eu, agiria da mesma forma, porque você seria eu’. Afinal, cada casal e cada um é único e decide o que quer da vida. E, às vezes, decide até não escolher e deixar o tempo correr.

Quanto às conjecturas sobre o gosto das mulheres e dos homens não deixo interrogação. Tanto mulher quanto homem quer é ser feliz. Quer amar e ser amado. Ambos buscam a felicidade. Não estão em lados opostos... claro, insisto, falo em nome daquele compromissado na relação a dois. De forma que existe o hiato ― a questão do diálogo ― as pessoas têm de falar o que sentem de verdade. Nem sempre o silenciar é provedor de sabedoria. Às vezes é síntese de fuga. A análise de monólogo interior abarca apenas o uno. Ponto final. Dessa vez falei demais, ― Osvaldo solta boa risada.

― Se eu não escrevesse os itens na minha agenda, não conseguiria relembrá-los para o meu amigo. Muito bom. O que a experiência acrescenta em nós, hein, detalhes que eu mesma não tinha antenado. Apesar de entender que acontece do jogo amoroso, às vezes, ser competitivo e de um não dar chance ao outro, querer ser poder. Aí, a entrelinha da relação é o que muito se vê.

Dodô e Osvaldo continuaram a lambiscar canjica e cada um com a vista para a natureza verde. Depois Osvaldo pigarreou, e ainda assim, lascou fogo no cigarro lamentando o vício. Dodô pensativa se era hora de riscar estrada.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

é isto, mas não deveria ser (CENA 48)

 

30/06/2021

            Estava empolgado. Disse a si mesmo: ‘você vive de empolgação. Às vezes na acomodação.’ Olhou para o livro que aguardava leitura. Interrompeu o vídeo que começara assistir para pegar o almoço, quatro da tarde e sem comer ainda. Riu de seus comportamentos. A instabilidade agora tão nítida e perceptível. Apenas vivia. Vive. As causas e consequências desse processo são os relatos de vida.

Osvaldo ouviu a campainha e saiu do aconchego da varanda após o almoço apagando a bituca de cigarro.

 Ei, Dodô! Veio cedo com as compras. Daqui a pouco terá descanso, daqui umas duas semanas estarei imunizado com a segunda dose e não incomodarei mais a você, Luiza e Ritinha. ― Osvaldo ia falando enquanto Dodô espalhava a compra perto da porta e limpava os objetos. ― Seu chinelo está aqui. Deixa que termino, entra e vai lavar as mãos. Fiz canjica pra nós.

Após tanto tempo de pandemia eles já não usavam máscara quando estavam à distância segura dentro de casa com janelas abertas.

― Valdo, eu tinha estranhado você não fazer pedido de ingredientes pra festa junina individual como fez ano passado. Mas o seu São João está atrasado, hoje são 30 dias de junho.

― Sabe, Dodô, os dias, semanas, meses e pelo jeito chegará anos e essa epidemia não tem fim. Afora tantas dores, quase 520 mil mortes, ouvi que são na realidade mais de 700 mil mortes se tudo fosse notificado, energias instáveis por todo esse processo que a gente vem vivenciando, assomadas às corrupções do e no governo, agora envolvendo até compras de vacinas conforme a CPI, às exigências do povo nas ruas vêm crescendo a cada encontro, tantas tragédias, desrespeito aos indígenas, matanças no Rio de Janeiro, no Amazonas, em tantos outros lugares, a venda por preço de banana das nossas últimas riquezas, esse tempo que vivemos é a barbárie. É traição e deslealdade aos cidadãos. O executivo, o legislativo, o judiciário, a cada dia nos deixam mais deprimidos pela falta de respostas dignas de instituições que deveriam honrar a vida dos brasileiros. ― Osvaldo ficou com respiração difícil e fez pausa. Em seguida continuou:

― Não aguento mais. Nem tenho astral pra festa junina, mas fiz a canjica. Espera aí, vou esquentar porque o frio está congelante, nove graus, coitada de você que ainda teve de vir aqui.

― Que isso, Valdo, tá me estranhando. Amigos atravessam oceanos, mares, lugares e apesar dos pesares ainda somos privilegiados, estamos vivos, e nossas irmãs e irmãos que se foram, hein? Quanta loucura vivencio todo santo dia. Fake news anda às turras por aí, inda mais com a queda do “minto muito” ― Dodô e Osvaldo relaxaram com risadas. 

― Canjica saindo fumegando.

― Huuumm! Tem que me contar o segredo. A canjica está deliciosa.

― Não conta pra ninguém, coloco pitada de noz moscada.

― Uau, está saborosíssima!

Enquanto comiam à distância prudente, interrompiam para conversa fiada.

― Valdo, lembra aquele amigo meu que anda escrevendo uma novela? Acho que comentei com você. Ele me perguntou esses dias o que eu achava do casamento com muitos anos de convivência. O personagem que ele descreve está na nossa faixa de idade.

― Dodô, você está sendo irônica! É bem mais jovem que eu. Relembro uma conversa nossa ano passado, quando veio aqui, talvez julho ou agosto ... e em pensamento veio-lhe a cena ...

 

― Gostou do poema do anjo pornográfico que te enviei, Dodô? ― Osvaldo inquiriu enquanto higienizava as mercadorias na cozinha. ― Credo em cruz, com essa pandemia tô vendo quanta sujeira vem, olha só! ― Dodô se aproximou da porta e ele mostrou o papel toalha úmido de álcool, imundo.

― Anjo pornográfico? Quem? Dalton Trevisan? Nelson Rodrigues? Você me enviou algo deles? Não lembro.

Osvaldo então declamou:

“...

exércitos correndo através

de ruas de sangue

brandindo garrafas de vinho

baionetando e fodendo

virgens.

...

há tamanha solidão no mundo

que você pode vê-la no movimento lento dos

braços de um relógio.

 

pessoas tão cansadas

mutiladas

tanto pelo amor quanto pelo desamor.

 

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras

cara a cara.

 

os ricos não são bons para os ricos

os pobres não são bons para os pobres.

 

estamos com medo.

...

 

ou do terror de uma pessoa

sofrendo sozinha

num lugar qualquer

 

intocada

incomunicável

 

regando uma planta.

 

As pessoas não são boas umas com as outras.

 

― O poema chama-se “o estouro”. Bukowski repete esta última frase três vezes. Dá pra sentir a dor, essa ênfase martela na nossa mente, ― e continua a declamação após as três frases iguais:


suponho que nunca serão.

não peço que sejam.

 

mas às vezes eu penso sobre

isso.

 

as contas dos rosários balançarão

as nuvens nublarão

 

e o assassino degolará a criança

como se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.

...

tem que haver um caminho.

 

com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda

não pensamos.

...

 

quem colocou este cérebro em mim?

 

ele chora

ele demanda

ele diz que há uma chance.

...”.

 

            ― Ah! Não sabia que o poeta estadunidense, Charles Bukowski, era chamado anjo pornográfico. Adorei o poema, mas discordo dele, não me sinto sozinha. Já te contei que sempre gostei de morar sozinha e já cinquentona casei, vivi com meu marido por alguns anos um casamento interessante e aventureiro, devido problemas cardíacos ele se foi. Novamente me vi sozinha.

― Não é o seu caso, certamente. Mas existe muitas pessoas sozinhas, solitárias, sem ninguém. ‘Viver sozinha’ é diferente de ‘morar sozinha’.

― Como uma pessoa com medo iria se preocupar em regar uma planta?

― Talvez seja a forma dela se livrar do medo.

Dodô ficou pensativa. Osvaldo finalizou.

― Os poetas usam a palavra carregada de significação, capaz de provocar, modificar, iluminar a realidade do mundo. ― Em seguida mudou de assunto:

― Nós temos o demônio pornográfico, né? ‘O demônio anda desgovernado por nossa boa terra, triste realidade, mas o que esperar de um presidente que falou 34 (trinta e quatro) palavrões numa reunião ministerial. E agrediu a imprensa mais de 200 (duzentas) vezes por não aceitar qualquer tipo de crítica.’ Você viu a última, quando perguntado sobre o dinheiro recebido pela esposa? Uma pergunta que esperamos resposta. ‘A palavra aqui revela pobreza de vocabulário, cultura rasteira e falta de argumento. É isto, mas não deveria ser.’

― Valdo, a coisa está feia. Como o caso da garotinha de dez anos, que decepção, instituições que deveriam protegê-la, olha o que fizeram. Quer dizer, o ministério dos direitos humanos, o hospital público, uma tal professora e até um tal padre usaram palavras sobre a menininha como se comessem casquinha de sorvete. Mulher, criança, não são mercadorias. O que esse governo pensa? Nós estamos cansadas de ser usadas como bode expiatório para a fraqueza de homens e até mulheres desse tipo.

― Quantas crianças, meninas e meninos violentados todos os dias neste país. Que família tradicional é essa que permite tais tratamentos e não luta por políticas públicas de proteção a elas? ― Osvaldo complementou.

― É isto, como você disse, mas não deveria ser.

Os dois amigos desconsolados com a miséria do mundo, da qual os poetas bem conhecem, emudeceram-se, e pensativos ficaram com palavras engasgadas. Osvaldo com espírito inconstante e paz inquieta deu voz:

― Encontraremos o caminho e a hora não tarda.

 

Osvaldo se envolveu na névoa da lembrança e se assustou com Dodô perguntando:

― O que diria para o meu amigo escritor, sobre convivência no casamento? Ele acha possível o casal não ter mais afinidades físicas, e ainda existir o amor espiritual.

― Pensei em mim também. ― Osvaldo respondeu. ― Por que as mulheres se cansam de fazer sexo e os homens não?

― Acho que as mulheres assumem os gostos dos homens e topam fazer sexo quando eles querem e como gostam. Mas não vejo a contrapartida do lado deles ― que são a atenção carinhosa, a expressão do afeto. Parecem que só pensam “naquilo”. Esquecem que para ter o que querem, devem fazer um esforço e dar à mulher o que ela sente falta, que é carinho, atenção, afeto. A gente se esforça para agradar o companheiro, por que ele não pode se esforçar para agradar a gente? Por que o homem não enxerga que tem parcela importante para a igualdade de desejos? Assim ambos ficariam satisfeitos. O homem no estilo de pouco diálogo, dificuldade de se abrir, de expressar sensibilidade, fica preso ao seu único interesse egoísta, sexo como instinto apenas. Quais são suas conjecturas?

quarta-feira, 5 de maio de 2021

não se perca na multidão – 1 ano e 60 dias em foco (CENA 47)

 

05/05/2021

Em três de março, Bia relembrara passeio que fizera ano passado, quando a pandemia ainda não pedia tantos cuidados como hoje. Hoje é necessário para quem valora a vida. A noite parecia estrelada como àquele dia em que saíra para um passeio com Josué, onde ela notara a mudança repentina de falta de público.

― Josué, a noite mostra o ocaso, veja só que céu. Somente nossa realidade transformou-se de tal forma que chego a relacionar ao caos. Um caos provocado por inábil atuação do governo, desde o início a gente vê. Não somente eu, você também, todas as pessoas, das mais simples às mais esclarecidas, todo mundo está vendo. Apenas o segmento amalucado continua abilolado e sai por aí sem prevenção. Como estará aquele comércio?

― Tem... muitos locais fechados, placas de aluga ou vende. Muitos faliram. Tiveram ajuda governamental?

Sentou-se enquanto Josué foi pegar cerveja na geladeira.

― Está bebendo quase todo dia. Isso não é bom, diminui imunidade.

― Bia, esse é meu fim de noite completo há ano. Comemoro que ainda vivo, sei lá amanhã. Já não aguento a estreiteza de caminhos. Não vislumbro esperança por mais que eu diga, calma Josué, esperançar, esperançar. Com as variantes da doença sendo criadas devido a extensão de casos, ninguém está livre de parar em UTI e pior, não ter leito, não ter oxigênio, como aconteceu em Manaus. As pessoas amarradas às camas e nem medicamento para sedação. Eu quero o direito de viver e a conduta de governos é cada vez gastar menos com a saúde e o SUS. Isso tem de mudar, urgente. ― A conversa girava em torno das transformações exigidas pela onda pandêmica no mundo. ― Já se viu que sociedades que investem em saúde têm seu diferencial, veja Cuba, por mais que a ilha seja sacaneada com as restrições dos países, a saúde é um bem que a cidadania pode contar. Esse neoliberalismo maluco que beneficia só poderosos tem que ter fim.

― Será que este ano poderei ir à Manifestação de oito de março, das Mulheres?

― Provável tenha eventos on line, mas presencial, duvido.

― Além de arriscado, tem as regras de restrição.  Que ano esse, entramos bem.

― Bem lá no fundo do poço. Continuo trabalhar porque ninguém me auxilia em nada não. Eu que não corro atrás pra ver. O presidente esteve aqui em férias e gastou rio de dinheiro que poderia me ajudar e aos outros pescadores, mas as mordomias não chegam em nós. E ainda aglomerou trazendo vírus pra cidade.

― O que os pobres podem fazer? Trabalhar é única solução, continuar a pesca hoje para ter comida amanhã. Não tenho cartão corporativo pra abater contas.

Às vezes o silêncio era a conversa em sua linguagem de muito dizer. Cada dia o silêncio de cada um em sua ilha se tornava imenso. Bia olhava, observava o marido, a conversa que não fluía e continuava indecifrável. Josué aconchegado ao seu lugar costumeiro, o guardar a si conhecido, perguntas não respondidas com maior intensidade. A mulher levantou, resgatou vasilhames da mesa e foi à pia. Um silêncio que era vasto a cada dia por saberem apenas daquele dia. O amanhã nebuloso.

Em dezessete de março deu-se um ano de pandemia pela anotação em sua agenda. Quando houve a quarentena local. Bia disse, como é estranho. Primeiro ano que se recordava não comprar agenda. Usara a mesma, a de 2020, escrevera ao lado apenas a mudança dos dias da semana. E esse dia, uma quarta-feira em 2021, era o segundo maior em quantidade de mortes em apenas um dia, quase 2.800. O Brasil totalizava mais de 285 mil mortes.

Enquanto isso, os ônibus continuavam abarrotados de trabalhadores. A burguesia ia às passeatas de carrões pedindo que não houvesse quarentena, pensando em seus negócios. As mortes aumentavam à medida em que a medida irresponsável era adotada. Calma e caldo de galinha não alimentavam pensamentos, pois as catástrofes iam avolumando. As pessoas estavam exaustas, o corpo médico de todo e qualquer lugar do país trabalhava sob forte pressão e sem descanso todos os dias. Eis que em 24 de março o Brasil chegou aos mais de 300 mil mortos e mais de 12.183.000 milhões de casos (provável subnotificado).

O ano difícil em 2020 para quem não tinha trabalho, mas conseguiu auxílio emergencial de 600 reais foi tolerável. Em 2021, ainda nesta data, milhões de trabalhadores sequer tinham qualquer auxílio. O governo iria começar em abril e com valor de apenas 170 reais, em média. Muitas pessoas foram cortadas do auxílio, apesar do desemprego ser ainda maior. E fechamento de muitas indústrias. E o povo não era escutado pelas instituições que ficavam em seu individualismo, esquecendo-se do papel de nação, o cuidado com seu povo.

O presidente continuava negacionista, ainda dizia, o povo ia ver que ele tem razão, errados são governadores e mídia que insistem no isolamento. Os dias não pareciam os mesmos porque a cada dia o número de mortes assustava pelo aumento diário. E, além disso, pessoas estavam sofrendo repressão dos órgãos de governo por expressar a realidade nua e crua ao olhar de qualquer um.  O presidente dizendo a curva vai abaixar. E reclamava de usar máscara. E continuava aglomerar.

― Que está escutando, Toninho?

― Ai, mãe, continuam as trágicas notícias e nem mesmo algo para alento da gente. Continuamos dançando à base de fake news de um lado e notícia cruel em todo fim de noite com aumento diário de mortes a cada dia. Parece não ter fim nossa agonia.

― Filho, sei que você está esgotado, ansioso.

― Ando tendo pesadelos. Amigos indo embora, amigos de amigos, parentes próximos de nós. Quando grito, me vejo dentro do buraco, em pânico, às vezes chorando, pois mãe, ninguém está livre da coisa. ― Toninho continuou:

― Está difícil sonhar neste país. Pés plantados no chão é algo difícil entre nós, porque hoje é três de maio e são mais de 408 mil mortes. O Brasil está perplexo e ao mesmo tempo moribundo. Isso é loucura! Mãe, pra onde caminhamos?

sábado, 3 de abril de 2021

quatr’estações dum coração mineirin

 


30/03/2021

        ou to no momento d'um jeito ou d'otro que ocêis num podi maginar. num sei se ocêis po ver ão mesmo tempo essi treim que si passá com eu. é sardade que num teim palavra boa dixpressar. às vêiz sintu um nó no gogó que amarga só no ingulir. teim vêiz que num sintu nada e num sei ixplicar por quê essas coisa se achega e depois disaparece que neim maria fumaça. ficu que neim locu na janela guardano minh’ prima Vera chegá pensano que se ela se proxima é porque o tempo vai cê doci pra nóis uai. sei que é goísmo de genti que teim ventu na cachola e vai pensá na prima c’otro zóio mais é meu zóio ora. in ver no andá dela a carma serená in vorta de eu e as nuve inscura indu imbora quand’ela vem vinu pra modi de mi fazê companhia. meu Deuzin do céu eu ficu gualzin esses anjo lá no teto d’ingreja parece que voo e neim sintu passá as quatr’estação e um tiquin perdidu ficu ganguejanu ‘on cô tô? on cô vô? on cô vim?